Tatuagem e Gambiarra

 
 

“Nada é mais próximo da comunicação humana do que nosso próprio corpo.”

Célia Maria Ramos

TATUAGEM:

Tecnicamente, é uma aplicação subcutânea obtida através da introdução de pigmentos por agulhas, a fim de deixar visível na pele alguma marca permanente. Além disso são apenas conceitos histórico-sociais agregados, que evidentemente divergem a cada contexto cultural e se transformaram ao longo dos 5.000 anos de história da tatuagem do qual temos registros. Desde a mais respeitada força sagrada ou status de nobreza, já serviu também de guia no mundo dos mortos e de cura de doenças. Teve também seus momentos de estigma, ora com orgulho ou com pesar, para escravos, nobres, ladrões, guerreiros, prisioneiros, prostitutas e cristãos.

Indiferente ao valor cultural agregado, a tatuagem carrega algo de intimo na relação humana. É a forma de escrever sobre o próprio corpo, de usá-lo como plataforma de comunicação visual. A linha limite que separa o eu dos outros, o invólucro do indivíduo, a pele, que por ser tão íntima a cada um é sua forma mais crua de relação. É lugar primeiro para emergir as vontades do eu, que podem ter origem em infinitos motivos, mas que transparecem por lá, e em muitas vezes através de agulhas e tintas.

 
 

GAMBIARRA:

Essa vontade que surge por infinitos motivos nos faz descobrir infinitas maneiras de se marcar. Certamente que nesse tempo todo a técnica evoluiu muito, passou por espinhas de peixe a agulhas de aço, e de pedaço de madeiras a máquinas elétricas. Mas o princípio básico do ato, se mantem o mesmo desde sempre: perfurar a pele para inserir pigmento.

Um exemplo é o que acontece em cadeias do mundo inteiro. A proibição da prática e a falta de materiais adequados não impedem a vontade de se fazer inscrições corporais definitivas. A procura por soluções se une ao tempo ocioso da vida do cárcere, e alternativas começam a aparecer. Com paciência, um clipe de metal ou uma corda de violão podem se tornar uma agulha, ou até sola de sapato pode se transformar em tinta. Existem infinitas receitas e formas de se juntar um equipamento básico para tatuagem. Desde que se entenda o princípio básico, as soluções começam a aparecer a partir da criatividade e disponibilidade de materiais em volta de cada um.

 
 

EXEMPLOS

Mara Salvatrucha e M-18

Gangues formadas por imigrantes de origem latina, como salvadorenhos e mexicanos, que surgiu na década de 80 entre ruas e presídios da Califórnia e atualmente se espalha pelas Américas Central e do Norte. Era comum ver os membros da gangue com tatuagens no rosto, pescoço e mãos, lugares difíceis de serem vestidos e que mostram a coragem e o desejo de pertencer a “família” assumindo permanentemente a identidade do grupo.

* fotos: https://br.pinterest.com/taiom/maras/  

Máfia Russa

Conhecida como Vor v Zakone, ou “ladrões na lei”, não costumam tatuar o rosto, porém a complexidade e a riqueza de seus códigos chamam a atenção. Sendo uma organização hierárquica, as tatuagens têm o papel de classificar essa escala social dentro da facção, contando também a historia da vida de quem as carrega.

* fotos: https://br.pinterest.com/taiom/vor-v-zakone/

No Brasil

Principal registro tem base na pesquisa do psiquiatra Moraes Mello, que trabalhou no Carandiru nos anos 20, e analisou mais de três mil diferentes marcas nos corpos dos detentos. Além dos motivos estéticos e do ócio, as tatuagens carcerárias pesquisadas apontaram para traços da personalidade do criminoso, mostrando tanto as especialidades do detento no mundo do crime, quanto os seus amores e preferências sexuais.


* fotos: https://br.pinterest.com/taiom/carandiru/

AGULHA E TINTA

O que faz a tatuagem não é a máquina especial desenvolvida para a prática. Basta ter agulha e tinta e de modo manual, ponto por ponto, furo por furo, pode-se sim fazer uma tatuagem. E por agulha, entende-se qualquer objeto rígido e afiado a ponto de perfurar a pele, como por exemplo, a corda Mi de metal do violão:

A maioria das tintas é composta basicamente por três componentes: pigmento, que pode ser mineral ou vegetal e confere coloração; veículo, que é a forma de transportar o pigmento, normalmente substâncias aquosas ou oleosas; e o aglutinante, que vai fixar o pigmento a superfície. No caso da tatuagem, a cicatrização da pele é responsável pela fixação do pigmento, portanto não se utiliza de aglutinante, como a resina acrílica ou cola e precisamos apenas de pigmento e veículo para fazer a tinta. Para o pigmento preto usa-se o carbono, recolhido como fuligem proveniente da queima de carvão ou madeira.

Existem diferentes formas de se fazer a tinta a partir do pigmento extraída da queima. Adicionando água apenas, é a mais básica e primitiva. Mas outras receitas podem incluir misturar shampoo para dar mais consistência a tinta, outras apenas acrescentando vodka ou gim. Ou então, utilizando a própria urina na pessoa a ser tatuada, o que pode soar bem estranho, mas pode prevenir infecções e ajudar na cicatrização.

 

MÁQUINA

A máquina de tatuagem elétrica moderna foi adaptada de um modelo de caneta para gravação em metal patenteado por Thomas Jefferson. Este modelo utiliza-se de um eletroímã, mas existem modelos que usam a força de um pequeno motor elétrico. O que essas versões fazem na verdade é apenas repetir o movimento de "sobe-e-desce" necessário para que a agulha perfure a pele repetidas vezes, tornando os pontos em sequência numa única linha. Movimento que pode ser pacientemente repetido a mão, segurando diretamente a agulha com a ajuda de uma haste e furando ponto a ponto.
A maioria das máquinas caseiras ou carcerárias utilizam um motor de rotação, e são compostas de três partes básicas: motor, base em forma de L, e ponteira. O motor pode ser encontrado em diferentes aparelhos elétricos, como toca-fitas, videocassete, escova de dentes elétrica, videogame, carrinho de controle remoto, barbeador, cd-player, etc. Ele é responsável pelo movimento circular, e que através da inserção de um contra-eixo passa a ter um diâmetro de giro maior, dando a distância necessária para o movimento da agulha. A base em forma de L é a peça central onde se apoiam o motor e a  ponteira, colocando-os em ângulo de 90 graus. A ponteira é o bico da máquina, onde o tatuador a segura e por onde a agulha passa internamente. Confira no tutorial simplificado abaixo como montar a sua:


 

Materiais:
- lapiseira 0,7 ou de numeração maior.
- colher ou garfo velho.
- fita isolante.
- agulha de costura.
- raio de bicicleta.
- fio-dental.
- isqueiro.
- tesoura e estilete.
- carregador de celular (que não tenha mais uso).
- motor de rotação

* ilustração: Máquina 1, 2, 3, 4 e 5.

 

INFORMAÇÕES BÁSICAS

Antes de se arriscar a marcar ou você seus colegas de forma permanente, existe alguns princípios básicos que você precisa saber. O primeiro já foi dito, mas vale relembrar para deixar bem claro: É PERMANENTE! Existem algum procedimentos de remoção a laser, mas além de caros e doloridos, não garantem a remoção completa dos pigmentos na pele e podem causar cicatrizes ainda maiores que a tatuagem do arrependimento.

Outro ponto tão óbvio quanto importante é que o ato de tatuar exige procedimentos básicos de bio-segurança e assepsia. Por entrar em contato direto com o sangue, é considerado pela ANVISA como uma microcirurgia, e seu exercício deve obedecer alguns critérios.

* normas Anvisa: http://portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/connect/7259210047457ee38aacde3fbc4c6735/Tatuagem+e+Piercing.pdf?MOD=AJPERES

Mas na gambiarra caseira ou carcerária é preciso se atentar apenas a princípios básicos de esterilização e limpeza. O alcóol pode ajudar a limpar a área de procedimento e do corpo a ser tatuada, com um isqueiro pode-se esquentar a agulha a ser usada, com intuito de eliminar germes e bactérias. Utilizar luvas garante a segurança do tatuador ao evitar o contato direto com o sangue do tatuado. E o mais importante é que todo material que entrar em contato com o sangue deve ser descartado. Isso inclui luvas, agulhas e a própria ponteira da máquina. Agulhas JAMAIS devem ser reaproveitadas!

Além disso, pra ajudar os aventureiros, vale dizer que a agulha deve perfurar entre 2 a 4 milímetros a pele do corajoso cobaia. Isso é em média a distância de onde passa da primeira para a segunda camada da pele. O que pode variar de pessoa para pessoa, mas varia dependendo da região do corpo também.

 
 

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versão em inglês
originalmente publicado na revista Facta #4, outubro/2017