ZEROSEN TATTOO 15 anos | O livro

No começo de 2024 fui convidado a colaborar com a produção de uma peça gráfica importante, o livro para celebrar os 15 anos de história do estúdio ZEROSEN.

Tenho um carinho especial por esse lugar que foi tão marcante na minha trajetória, onde fiz minhas primeira temporadas como convidado em São Paulo, em 2012, e depois me fixei como tatuador residente em 2019. Lugar onde aprendi bastante sobre a cultura da tatuagem e onde fiz amizades que guardo até hoje.

Minha tarefa era de escrever o texto introdutório, editar e revisar os textos de apresentação dos tatuadores e falar sobre o encontro de tatuadores promovido pelo estúdio, o GOOD MOMENTS TATTOO MEETING, do qual tive a honra de participar como artista, colaborador, e assistente de produção e curadoria.

O livro foi lançado pela editora AFLUENTE, em outubro de 2024, e está disponível no site da editora (compre aqui).

ZEROSEN TATTOO: 15 anos; Editora Afluente @2024

 

Deixo aqui as três partes do texto de apresentação, onde entre pesquisas e memórias traço algumas linhas conectando a história milenar da tatuagem japonesa com a trajetória particular do estúdio no centro de São Paulo. Um lugar por onde passaram, e ainda passam, artistas/tatuadores dedicados de corpo e alma ao seu ofício.


 

Prólogo


Uma prática tão antiga quanto a humanidade e tão complexa quanto nós mesmos, a tatuagem tem vários inícios e muitos fins, ou melhor, transformações. A vontade humana de adornar o corpo se mistura à cultura, dando  formas e significados às marcas que carregam. Encontrada em toda parte e de todas as formas, pode passar a impressão de algo superficial, banal, o que não faz juz a sua força. Há muitas e muitas histórias por trás dessa arte e de seus artistas, e mesmo o espaço onde esse ritual é feito acumula a energia dessa prática, que atravessa vidas e segue seu caminho por gerações.

Não há como tirar o corpo da tatuagem: ela necessita da presença. Além do desenho na pele, no ato de se tatuar é criada uma ponte por onde passam conhecimentos e aprendizados. São vivências que acabarão por formar outras pontes, levando adiante elementos que formam essa cultura. Mesmo em sua grande diversidade, há algo nessa prática que diz sobre as relações construídas em seu caminho, sobre o respeito e confiança necessários para que aconteçam. E é nessa colaboração que o processo ganha sua força e, exatamente aí, que acreditamos estar sua parte mais valiosa.

O local onde as trocas são feitas se torna um ponto de convergência, de movimentos antigos e atuais, que dão forma e longevidade a essa cultura. E há muitas maneiras possíveis de se construir esses espaços, cada um do seu jeito, influenciados pelo contexto e as pessoas que por ali se cruzam. Aqui falamos a partir de um ponto específico: Rua Amaral Gurgel, centro de São Paulo, Brasil, no ano de 2024, costurando histórias dos 15 anos do estúdio ZERO SEN, contada por alguns (dos muitos) que ali encontram um ambiente fértil para desenvolver sua prática. Estudos que vão além da técnica e do fazer deste trabalho, e se misturam ao modo de vida, de ver e pensar o mundo, e que por isso mesmo, refletem tantas outras histórias, de tempos e espaços muito além das paredes de um único estúdio. 

ZEROSEN TATTOO: 15 anos; Prólogo, texto: TAIOM @Afluente Art Editora, 2024

 
 

ZEROSEN TATTOO: 15 anos; A Margem do Rio, texto:TAIOM @Afluente Art Editora, 2024

A Margem do Rio


Um corpo gravado tem uma força difícil de explicar. Muitos lembram de quando viram uma pessoa tatuada pela primeira vez, e do impacto que essa imagem causou. Alguns vieram se tatuar também, já para outros, a força desse contato foi tanta que, de alguma maneira, a tatuagem passou a fazer parte de suas vidas definitivamente. Mas um certo mistério ainda existe em sua volta. Há algo inexplicável e atraente que se mantém intrinsecamente ligado a essa arte.

Percebemos essa camada mística e lendária em uma de suas vertentes mais cultuadas até hoje, a Tatuagem Japonesa, onde características da prática se somaram aos costumes e histórias de um povo, criando um universo bastante complexo, rico em valores éticos e estéticos. Durante o período Edo (1603-1868) houveram muitas trocas entre a arte de gravar na pele e na madeira, e suas histórias por vezes coincidem, como na popular série gráfica dos 108 heróis do Suikoden, gravadas por Utagawa Kuniyoshi. No conto, os heróis se escondem a margem do rio para lutar pelos oprimidos contra injustiças de um governo corrupto, e para acentuar o lado lendário dos rebeldes, Kuniyoshi os retratou com tatuagens cobrindo grandes partes de seus corpos, representando cenas naturais, criaturas mitológicas e símbolos religiosos, o que teve grande apelo às classes trabalhadoras. Artesãos, bombeiros, mensageiros, vendedores de rua, e muitos daqueles que não eram parte do xogunato (ditadura militar feudal) fizeram da tatuagem uma maneira de expressar sua identidade, religiosidade, bravura e honra. E também a rebeldia contra o poder vigente e restrições impostas, como fizeram os herois do Suikoden. Essa forma de arte cobrindo o corpo quase todo, era referenciada nas gravuras Ukiyo-e e no teatro Kabuki, artes populares, e até chega a ser proibida durante o período Meiji, mas nunca deixa de ser cultivada. Passam séculos e as histórias de vida de pessoas comuns, rebeldes e heroicas, continuam a ser contadas. E pelo refinamento do trabalho manual essas imagens atravessam o mundo, mantendo a tatuagem viva e popular, sem perder seu encanto e beleza.

Vestir o corpo com gravuras demanda tempo. A dedicação do artista, a manualidade do processo e o comprometimento da pessoa que carrega a arte em seu corpo, quando estão na maneira de fazer, se tornam visíveis no resultado final. Muitos podem ser os motivos que levam pessoas, de diferentes épocas, a carregarem no corpo símbolos de sua cultura, que muitas vezes não é a dominante na sociedade onde vivem. Repressão, preconceito e discriminação também atravessam a história da tatuagem pelo mundo, mas a artesania abre brechas e entre as ruas, praças e portos, e encontra em pessoas comuns o fluxo que a movimenta. E é assim que, pelas margens, o rio toma forma e segue seu caminho.

 

Zero Sen


E foi no Japão, por volta de 2004, atravessando diferentes cidades que os caminhos de HIRO, FAME e CHRISTIAN ARAE se cruzaram, e entre conversas sobre arte, tatuagem e vida, o laço se fortalece a ponto de atravessar o oceano outra vez. De volta ao Brasil, em 2009 decidiram criar um espaço dedicado à tatuagem nos moldes que conheciam, um lugar onde os valores e ideologias que cada um deles traziam na bagagem pudessem ser cultivados. Como uma semente, que busca seu caminho ao sol em meio ao concreto de uma metrópole, o estúdio privado, no quarto andar de um prédio comum do centro, foi procurando seu lugar na cultura local.

O contexto da época parecia conturbado e a tatuagem estava em crescimento: aparecia cada vez mais na mídia, franquias de lojas surgindo em galerias comerciais e fabricantes de materiais investindo forte em produção - o que se apresentava como um mercado promissor, ótima oportunidade de negócio. Até o governo abriu o olho e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária buscava entender como regulamentar uma atividade que nem era considerada profissão. É neste horizonte que surge um pequeno ponto, voando baixo e em direção contrária aos grandes empresários que começam a tomar conta do território.

Ágil, longo alcance de voo e muita potência, são as características do lendário avião japonês A6M. Com tecnologia aeronáutica inovadora à época, o que tornou esse avião tão respeitado - e temido, foi o comprometimento e habilidade dos pilotos, que ao assumirem a responsabilidade da missão, dedicavam a própria vida. Essa aeronave ficou conhecida como Zero Sen e os pilotos, Kamikaze.

Com portas fechadas e horários marcados, cinco salas repletas de desenhos e pinturas são unidas por um ambiente central, e durante quinze anos vem sendo cuidado por várias mãos, assim o estúdio ganha a força dos que por ali trabalharam e aprenderam. Pensado para ser um lugar onde tatuadores se ajudam no desenvolver artístico, e compartilham o respeito pela arte com clientes e amigos. Lugar onde se compartilharam ensinamentos que vieram de muito longe, de outro tempo, e que de alguma forma encontraram seu fluxo e convergiram alí, no centro de São Paulo, cercados pelos contrastes sociais e culturais de uma das maiores metrópoles do mundo. Assim o Zero Sen segue seu voo, dinâmico e  comprometido, de respeito a arte e cultura da tatuagem.

 

ZEROSEN TATTOO: 15 anos; ZEROSEN, texto: TAIOM @Afluente Art Editora, 2024

 

ZEROSEN TATTOO: 15 anos; Ficha técnica @Afluente Art Editora, 2024

 

ZEROSEN TATTOO: 15 anos; Ficha técnica @Afluente Art Editora, 2024

ZEROSEN TATTOO: 15 anos; Índice @Afluente Art Editora, 2024

 

ZEROSEN TATTOO: 15 anos; TAIOM; Fotos: Luisa Dale (esq) Dammer Martins (dir) @Afluente Art Editora, 2024

ZEROSEN TATTOO: 15 anos; TAIOM; Fotos: Dammer Martins @Afluente Art Editora, 2024